Corrupção sistêmica e impunidade: o mercado ilegal de terras da Amazônia anunciadas no Facebook
- Emilia Davi Mendes
- 5 de abr. de 2021
- 6 min de leitura

Desmatar florestas sem autorização, vender terrenos sem títulos que comprovem a propriedade, comprar terras públicas invadidas na Amazônia. Tudo isso a um clique de distância, no marketplace do Facebook. A história é tão absurda que você pode se perguntar: ué, isso tudo ficou legal assim, do dia para a noite?
Uma investigação da BBC localizou no espaço de vendas da rede social Facebook dezenas de anúncios em que são negociados, por valores que chegam aos milhões de reais, pedaços de floresta ou áreas recém-desmatadas, cuja propriedade não pertence aos vendedores.
Foram mapeadas áreas à venda até mesmo dentro de unidades de conservação e de terras indígenas, zonas reconhecidamente de domínio público. Entre os anúncios identificados, há um terreno dentro da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau (RO), dois na Floresta Nacional do Aripuanã (AM) e um na Reserva Extrativista Angelim (RO).
Embora as leis ambientais tenham sido muito fragilizadas pelas medidas de um governo que quer “passar a boiada” nas normas de proteção ambiental, a verdade é que tudo isso continua SIM sendo crime, a saber: a) desmatar florestas sem autorização é crime com pena de até quatro anos de prisão e multa (art. 50-A da lei nº 9.605/1998); b) vender terras sem títulos que comprovem a propriedade pode ser enquadrado como estelionato, que tem pena de até cinco anos de prisão e multa (art. 171 do Código Penal); c) comprar terras reconhecidamente públicas pode configurar o crime de invasão de terras públicas (art. 20 da lei nº 4.947/66).
Esse esquema de comercialização de territórios da floresta amazônica na plataforma é, portanto, manifestamente ilegal. No entanto, as causas para que esse mercado ilícito ocorra de maneira tão explícita e ainda assim permaneça impune sinalizam para falhas muito mais profundas, frutos de uma desordem fundiária estrutural.
1. O Caos Fundiário
A estrutura fundiária do Brasil tem duas características marcantes: a grilagem das terras públicas e a concentração. Há 171 anos o Brasil deu um passo determinante para a sua histórica concentração fundiária. A Lei de Terras assinada pelo Imperador Dom Pedro II em 1850, oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios.
Em pleno início do século XXI, a alta concentração de terras do Brasil está entre as maiores do mundo. Para se ter uma ideia, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2.000 hectares (20 km²), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
A grilagem também é um problema tão antigo quanto o Brasil e causador de desordem fundiária ao longo da história. Trata-se da tomada de terras do poder público ou de propriedade particular pela falsificação de documentos, assim nomeada em razão da técnica de utilização da ação de grilos no papel para conferir-lhe aparência de envelhecimento.
Artifícios mais sofisticados podem substituir a ação desses insetos atualmente. O cruzamento de registros em cartório de títulos de imóveis, as deficiências do sistema de controle de terras no Brasil e mesmo a corrupção de órgãos que deveriam democratizar o acesso à terra e solucionar conflitos no campo, são alguns dos motivos para que a fraude se perpetue.
Sob o aspecto ambiental, a grilagem é responsável por grande parte do desmatamento no país. Os grileiros desmatam áreas públicas, simulando a posse dos imóveis com documentos falsos. Em seguida, as áreas acabam sendo vendidas para grandes proprietários e passam a abrigar atividades agropecuárias, desequilibrando o ecossistema e aumentando a emissão de CO2 na atmosfera.
Ao tratar sobre a questão, o Procurador da República em Rondônia, Raphael Bevilaqua, explicou que 70% das terras de Rondônia são da União e que a maioria dos proprietários de terra do estado são pessoas que na verdade não possuem a propriedade, pois ocupam terras públicas. A elite política e econômica se aproveita do caos fundiário e os grandes proprietários mantêm vínculos com políticos e juízes locais.
Dessa forma, essa proximidade que se revela tanto por corrupção quanto por “afinidade”, abre margem para a ocupação ilegal de terras do estado por esses pretensos proprietários. Bevilaqua afirma ainda que as autoridades estatais sempre tiveram essa postura permissiva, mas que operações do governo federal ajudavam a conter o desmatamento em Rondônia.
Entretanto, desde a eleição de Bolsonaro essas medidas de contenção foram enfraquecidas, operando-se um verdadeiro alinhamento do governo estadual de Rondônia com o governo federal. A consequência dessa sinalização “favorável” por parte das autoridades públicas é o aumento das práticas de grilagem e desmatamento, a ponto desses grupos não sentirem qualquer intimidação em anunciar a venda, no Facebook, de territórios protegidos da Amazônia.
2. Corrupção e anistia da grilagem de terras públicas
A regularização fundiária no Brasil sempre esbarrou em fortes barreiras políticas e corrupção sistêmica. São inúmeras as notícias envolvendo episódios de corrupção dentro do próprio INCRA, órgão agrário que deveria democratizar o acesso à terra e mediar conflitos no campo.
Atrelado à prática de grilagem por particulares, funcionários do INCRA participam diretamente da privatização ilegal de terras públicas ao forjar documentos para sua venda. Em dezembro de 2005, agentes da polícia Federal de Brasília que atuavam na operação Terras Limpas prenderam Eustáquio Chaves Godinho, funcionário do órgão, acusado de participar de uma quadrilha que transferiu cerca de 1 milhão de hectares de terras de Rondônia a partir da emissão de documentos falsos.
Em outubro de 2016, a operação Theatrum desarticulou um esquema de corrupção envolvendo servidores públicos do INCRA, fazendeiros e políticos do estado de Mato Grosso acusados de agendar antecipadamente as fiscalizações e contar com a participação de “laranjas”, fazendo da fiscalização uma verdadeira farsa.
A explicação para a continuidade e crescimento da apropriação privada da renda da terra por meio da grilagem perpassa necessariamente pela corrupção da “venda” das terras públicas. Evidência incontestável é o fato dos territórios públicos do INCRA na Amazônia Legal estarem georreferenciados e grilados com o consentimento dos funcionários do instituto.
Estes fatores continuam compondo o dilema fundiário brasileiro, no qual o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária contribui para dificultar a destinação das terras para assentamento de pequenos e médios agricultores, ao mesmo tempo em que corruptamente favorece latifundiários e empresas do agronegócio.
O documentário intitulado “Amazônia à venda: o mercado ilegal de áreas protegidas no Facebook”, fruto da investigação da BBC, revela um trecho em que um dos anunciantes de terras afirma que “com os contatos certos e corrupção, qualquer restrição ambiental poderia ser contornada”, referindo-se às propinas que possibilitam o sucesso do esquema junto ao INCRA.
Os anunciantes entrevistados na reportagem também compartilham o sentimento de otimismo frente às apropriações ilegais em razão da política perpetuada pelo governo Bolsonaro. De fato, o presidente implantou essa expectativa entre os grileiros, mais especificamente com a publicação da Medida Provisória 910.
A medida provisória modificou a data limite para regularização de áreas públicas ocupadas. A lei anterior permitia que áreas públicas ocupadas até 2008 fossem regularizadas com vários benefícios ao proprietário. Com a MP 910, a data de regularização com os benefícios passou para maio de 2014 e, com pagamento do valor previsto na planilha do INCRA, que corresponde a menos da metade do valor de mercado, a data limite para ocupação passou para dezembro de 2018.
A iniciativa não foi discutida pelo congresso a tempo e por isso perdeu a validade. Todavia, para além da perda de eficácia da medida, essa norma representou, nos últimos 3 anos, a segunda mudança de data para quem invadiu e desmatou ilegalmente terras públicas se regularizar, anistiando crimes ambientais. Essa mensagem reforça para os grupos criminosos que desmatam e se apoderam de terras do poder público, que novas alterações podem ocorrer no futuro. E isso estimula os crimes ambientais. Com efeito, segundo análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) entre 2018 e 2019, 35% dos desmatamentos na Amazônia ocorreram justamente em terras públicas não destinadas, categoria visada por grileiros.
Nota-se, portanto, que o descompasso na questão fundiária se repete na sociedade brasileira. O descumprimento de normas legais e a elaboração de novas normas para regularizar os atos ilegais, sempre foi o procedimento histórico das elites nacionais. Por isso, são tão populares no imaginário social brasileiro expressões como "o crime compensa" ou "amanhã se dá um jeito", para justificar esses comportamentos fraudulentos.
Referências
FELLET, J. Investigação revela terras protegidas da Amazônia à venda no Facebook. G1, 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/02/26/investigacao-revela-terras-protegidas-da-amazonia-a-venda-no-facebook.ghtml>. Acesso em: 30 mar. 2021.
ROCHA, D. C. C.; DANIEL, C. G.; ROCHA, E. S. PL 2633/20 - grilagem, posse de terras devolutas ou de terceiros e a regularização fundiária. Migalhas, 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/339715/grilagem-posse-de-terras-devolutas-e-a-regularizacao-fundiaria>. Acesso em: 30 mar. 2021.
PRIZIBISCZKI, C. MP da regularização fundiária anistia grilagem de terras públicas até 2018. O eco, 2019. Disponível em: <https://www.oeco.org.br/reportagens/mp-da-regularizacao-fundiaria-anistia-grilagem-de-terras-publicas-ate-2018/>. Acesso em: 30 mar. 2021.
MP 910 é crime: aprovar a MP da Grilagem é anistiar a ilegalidade. WWF, 2020. Disponível em: <https://www.wwf.org.br/?76084/MP-910-e-crime-aprovar-a-MP-da-Grilagem-e-anistiar-a-ilegalidade>. Acesso em: 30 mar. 2021.
DOLCE, J. Como a corrupção do Incra levou à expulsão de um pequeno agricultor de sua terra. Carta Capital, 2020. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/como-a-corrupcao-no-incra-levou-a-expulsao-de-um-pequeno-agricultor-de-sua-terra/>. Acesso em: 30 mar. 2021.
PF desarticula esquema de corrupção no Incra de MT. Canal Rural, 2016. Disponível em: <https://www.canalrural.com.br/noticias/desarticula-esquema-corrupcao-incra-64326/>. Acesso em: 30 mar. 2021.
Por Emilia Davi Mendes | Bacharela em Direito pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Entusiasta dos Direitos Humanos e engajada com a agenda da ONU para o desenvolvimento sustentável.
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